Enfrentando a ambiguidade

Enfrentando a ambiguidade

A crise do COVID-19 que enfrentamos na atualidade traz uma bem-vinda reflexão sobre a forma como nossa sociedade enfrenta problemas. É de enorme valia tirar lições para o futuro.

Em uma crise complexa como a que vivemos, é evidente que qualquer tomada de decisão envolve múltiplos fatores. Enfrentamos o dilema entre determinar o isolamento social e impactar a rotina das pessoas e a economia; entre salvar vidas impedindo um esgotamento no sistema de saúde e ao mesmo tempo evitar desemprego em massa e uma possível recessão econômica irrecuperável.

Uma coisa é certa: não se pode ser imediatista. Há que se salvar vidas no presente mas também se atentar para o futuro que vem pela frente. Tem que se agir com a devida urgência para evitar um possível colapso nos sistemas de saúde e também evitar um colapso nos demais sistemas da vida humana: trabalho, renda, economia, lazer, equilíbrio emocional. Afinal, não seria a vida uma grande teia de sistemas interligados formando um todo a que chamamos “sociedade”?

É comprovado que estresse, falta de sol e exercícios físicos diminuem a imunidade das pessoas. Assim como o desemprego, que deságua em estresse, ansiedade e até mesmo depressão também fragiliza a imunidade e causa mortes. Famílias de baixa renda morrem por desnutrição. No Brasil, um estudo publicado pela The Lancet atribui 31 mil mortes ocasionadas apenas pelo aumento do desemprego no país entre 2012 e 2017.

O efeito é cíclico e tudo é interdependente. Decisões tomadas hoje afetarão nossas vidas por anos. Uma queda abrupta na economia gera desemprego e perda de renda, que sistematicamente empobrece não apenas as famílias, mas também o Estado que, por sua vez, perde arrecadação com impostos e compromete sua capacidade de atendimento nos sistemas de saúde. E tudo está relacionado.

Em momentos de decisões complexas, um olhar multidisciplinar se faz fundamental.
Pessoas tomam decisões influenciadas pelos seus interesses e diferentes pontos de vista. Tradicionalmente, médicos não costumam ser bons gestores. Se, por exemplo, delegarmos apenas aos médicos as decisões que precisamos tomar para enfrentamento da crise, nossa sociedade tenderá a ficar em quarentena por meses, um tempo talvez exagerado, que garanta ao médico seu principal objetivo: salvar vidas.

Porém é possível que salvem 1.000 pacientes que contraíram COVID, sem perceber que fora do hospital, no mesmo momento, têm outros 10.000 morrendo por outros motivos, fora de seus alcances de visão. Mortes indiretas, menos visíveis ou causadas por motivos “desconhecidos”. Fome, depressão, violência.

O problema é: médicos não foram treinados a enxergar o todo e incorporar nos seus protocolos fatores além dos de sua especialidade. Foram treinados para salvar as vidas que estão em suas mãos nos limites dos hospitais e salas de atendimento, a qualquer custo. Se ampliarmos o espectro, não seria a missão dos médicos zelar pela saúde da sociedade como um todo, dentro e fora dos hospitais? Observar a saúde em todos os seus aspectos muda a perspectiva de atuação do médico na sociedade. Essa simples ampliação de foco já nos faria repensar algumas questões, aumentam o nível de complexidade nas decisões e ampliam as responsabilidades dos decisores.

Assim como os médicos, economistas, administradores, advogados, arquitetos e engenheiros também não foram treinados a olhar o todo, fora de seus espectros de atuação. Vivemos a era do conhecimento especializado, com visões fragmentadas de mundo. Cada um no seu feixe de atuação, como se fosse possível segmentar a sociedade em disciplinas isoladas, como na faculdade. O mundo real é diferente. Não fomos treinados para o mundo como ele de fato se apresenta.

Faltam visões interdisciplinares, capacidade de pensamento sistêmico e uma visão holística sobre os problemas modernos. A recente pandemia traz luz a esse fato: o despreparo da nossa sociedade em lidar com problemas complexos. Revela nossa profunda incapacidade em lidar com a ambiguidade, integrar disciplinas e fazer profissionais de diferentes áreas cooperarem.

Imagine se a partir de hoje desenvolvêssemos nossas equipes, profissionais e organizações para abordagens mais integradas e que apliquem inteligência sistêmica na superação de desafios. Nossas crianças aprenderiam, desde cedo, a abraçar a ambiguidade e o pensamento crítico-sistêmico. Uma sociedade mais cooperativa se apresentaria.

Não há fugas. Não tem como fingir simplicidade em meio ao complexo; o simples rapidamente se torna simplório e os resultados virão estampados de mediocridade, frutos de soluções parciais para os problemas. Desafios complexos precisam ser resolvidos com equipes multidisciplinares e que adotem, desde o princípio, uma perspectiva global sob problema.

Vivemos esse mesmo desafio nas empresas, onde há dilemas a serem solucionados e ambiguidades a serem dirimidas. Como na sociedade, nas empresas também é fundamental formar equipes multidisciplinares capazes de atuar em conjunto na solução de problemas. As organizações nada mais são que um retrato, um micro ambiente da sociedade. Mudam as escalas mas mantém-se a natureza da complexidade de algumas decisões. Negócios que forem capazes de colocar especialistas e perfis diferentes para criar soluções, em conjunto, para problemas complexos, sairão na frente na construção de valor real na sociedade.

Por: Rafael Zacharias

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